Em
1965, alguns rapazes, estudantes de Cinema, juntaram-se para montar uma banda.
Surgia assim The Doors, uma das bandas
mais cultuadas do século XX. Em parte, pelo talento e pela erudição de seus
membros, e em parte pelo carisma e pelo magnetismo de seu líder. Os integrantes
da banda eram adeptos da psicodelia (palavra formada por
dois radicais gregos: psiké, que significa alma, e delos,
que significa manifestação). A psicodelia diz respeito a perceber aquilo que
não se consegue perceber comumente.
O
nome da banda vem de Blake. William Blake era vidente, tinha visões com anjos e
demônios e dizia prever o futuro; ele via mais que os outros. É muito interessante
pensar Blake como influência de Morrison, uma vez que ele pensa uma dinâmica
muito parecida com a de Nietzsche para vislumbrar a verdade, a essência do
mundo, mesmo que não use os mesmos termos: "Sem contrários não há
evolução. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à
existência Humana. Destes contrários nasce aquilo que o religioso denomina Bem & Mal. O Bem é o ativo que obedece a Razão. O Mal é o ativo que surge da
Energia. Bem é Céu. Mal é Inferno". Para Blake, a
"verdade" se organiza para o homem em uma tensão dos contrários,
assim como para Nietzsche. O bem é necessário como algo que garante uma
organização e emerge da razão, e o mal, como uma força incontrolável que emerge
da própria natureza humana. Mais à frente no mesmo poema, Blake identificará o
mal com o corpo e o bem com a alma, assim como Nietzsche identifica o apolíneo
com o indivíduo e o dionisíaco com o coletivo, ou o apolíneo com o sonho e o
dionisíaco com a embriaguez; uma força que organiza e outra que irrompe. A vida
é trágica. Nem apolínea nem dionisíaca, mas um equilíbrio entre essas forças;
ou usando os termos de Blake, o homem não é nem bom nem mau, mas as duas
coisas. O papel da Arte é tornar isso possível, ou seja, ver o mal, o terrificante
sem que isso esmague o homem. Parafraseando Nietzsche, a Arte existe para que a
vida se torne suportável. Tornar aquilo que é belo sublime ou, fazendo valer a
frase de Blake uma vez mais, "se as portas da percepção se desvelassem,
cada coisa apareceria ao homem como é, infinita." (ou trágica), ou seja,
cada coisa nos apareceria de um modo como não podemos dar conta, ou nos
daríamos conta de que cada coisa que há não é a própria coisa, mas um recorte,
uma perspectiva possível.
A
VIDA NÃO É NEM APOLÍNEA NEM DIONISÍACA, MAS UM EQUILÍBRIO ENTRE ESSAS FORÇAS;
USANDO OS TERMOS DE BLAKE, O HOMEM NÃO É NEM BOM NEM MAU, MAS AS DUAS COISAS.
Pensar
a banda ‑ e Doors como tendo um projeto de expandir a percepção de mundo a
partir da música é um exercício reforçado ao se falar sobre o processo criativo
da banda. Os relatos dos membros da banda falam de um processo caótico feito a
partir da letra de Jim Morrison, que é originalmente poeta, e não músico. Se as
letras em sua maioria eram de autoria de Jim, as melodias eram criações
coletivas que modificavam o modo como a música era organizada; o importante era
a música, e não cada um dos integrantes da banda. Nesse sentido, o processo de
expansão da percepção pode ser associado a um processo dionisíaco de embriaguez
e destruição individual. A partir do momento em que os indivíduos levam suas
contribuições e as somam, criam algo que é diverso da soma das contribuições
musicais. Outro aspecto da banda eram os improvisos, que ocorriam em gravações,
shows ou durante a criação, incorporados ao corpo da música sem pestanejar.
Novamente, contribuições individuais engolidas pelo todo, pela banda, pela
música, que é por si só dionisíaca, pois é informe. Identifica-se, assim, um
processo de criação da banda em que todos dão suas contribuições, as quais se
desmancham na música.
Mas
Dionísio necessita de máscaras para ser visto, e essa máscara é a imagem da
banda de Rock'n'roll. Jovens, bonitos e charmosos: sem isso a
música dionisíaca criada pelo grupo não apareceria, pois não teria corpo. E a
banda ganhou corpo e rosto, uma encarnação: Jim Morrison.
JIM MORRISON:
HERÓI?
Ser um astro de rock é um movimento em direção ao apolíneo, ao
ser individual, é aquilo que há de mais próximo a um herói. Jim é um
receptáculo para a verve dionisíaca da banda, seu ímpeto. Jim é a máscara
apolínea que permite que a música se manifeste por meio dele. Se a música da
banda é dionisíaca, Jim Morrison é a máscara apolínea que o ator trágico deve
vestir para encarnar o herói. A relação entre a música e Jim Morrison procura
conciliar o dionisíaco presente na poesia com o apolíneo exigido pelo show business.
Jim Morrison não sabia tocar instrumento algum, então, para conseguir fazer
música, ele necessitava dos outros membros da banda, principalmente de Ray
Manzarek, o principal interlocutor de entre Jim e os outros integrantes dos Doors. Dentro da banda, Jim representava a força dionisíaca, enquanto os
outros, a apolínea; se Jim trazia letras sem melodia, ou com uma melodia
"capenga", os outros a organizavam e a tornavam música.
Existia uma dinâmica Apolo-Dionísio no processo criativo da banda que se
invertia no momento de apresentarem-se. Durante a criação, Jim era o Dionísio,
que trazia uma torrente de força e vigor, e Ray, John e Krieger eram o Apolo, que
dá forma ao que foi trazido, que transforma aquilo em algo possível de ser
apresentado. Durante as apresentações, Jim era a máscara de Apolo que aparecia
em primeiro plano, ao passo que os outros músicos pouco eram percebidos. Em
qualquer gravação de apresentações da banda, todos os outros músicos eram
esquecidos e a câmera só "lembrava" de Jim Morrison. Naquele momento,
e Doors era, enfim, uma banda trágica,
na qual Apolo e Dionísio se fundiam em apenas um. Como foi declarado por Henry
Rollins (1961), músico, autor e fã da banda: "O que me impressionou logo
no começo foi a voz de Jim Morrison, o controle, a riqueza e como ele passava
daquele controle e ternura para a ferocidade animalesca que ele tinha".
Morrison
usava seu próprio rosto como máscara, porém criava outras máscaras como a de
King Lizard ou a de Mr. Mojo Risin. O Rei Lagarto é um alter ego de Jim, a sua
outra máscara. Jim escolhera essa imagem porque ela representava o que há de
mais primevo dentro do homem. Mr. Mojo Risin, um anagrama de Jim Morrison,
aparece na gravação de L.A. Woman, um momento de pura improvisação e
espontaneidade. O que ele quis dizer exatamente? Não importa.
Sem
a banda, Jim Morrison jamais poderia ter feito seu ímpeto dionisíaco tomar
forma, e, sem Jim Morrison, os e Doors
jamais teriam sido aquilo que foram. Um dos grandes temas da banda é a morte,
uma morte que reúne, que compatibiliza o homem com sua natureza. Uma morte
dionisíaca garante a impermanência da existência, enquanto a vida apolínea
deseja sua eternização. Exemplo interessante aparece nesse trecho de Light
my Fire: " e time to hesitate is through/No time to wallow in the
mire/Try now we can only lose/And our love become a funeral pyre/Come on baby,
light my /Come on baby, light my /Try to set the night on ‑ re, yeah". Sobre esses versos, Rob Krieger diz: "Jim
escreveu o segundo verso sobre a pira funerária. E eu disse: Jim porque insiste
em falar da morte? E ele disse: não cara, é perfeito. Tem a parte do amor e,
depois, a parte da morte. E ele tinha razão". e end é outra
música emblemática que, em seus versos, dá conta de uma visão terrificante
sobre a morte: " This is the end/Beautiful friend/ is is the
end/My only friend, the end/Of our elaborate plans, the end/Of everything that stands,
the end/ No safety or surprise, the end/I'll never look into your eyes
again/Can you picture what will be/So limitless and free/ Desperately in need
of some stranger's hand/In a desperate land?". Meu único amigo, o
fim lembra perfeitamente a sentença de Sileno, servo de Dionísio, dada ao Rei
Midas. Quando este pergunta a Sileno qual
das coisas era a melhor e mais preferível ao homem, recebe como resposta: não
existir, mas, agora que existe, morrer o quanto antes. É o destino de
todos. Essa verdade terrível atormenta o homem e é na luta contra esse 'fim' que
a tragédia se estrutura. A vida eterna apolínea e a desintegração
dionisíaca. "Father?", "yes, son", "I want to kill
you/Mother I want to fuck you". Se
existia alguma dúvida sobre se havia tragédia em Jim, ele convida Édipo a
esclarecer.
Este é o fim
Belo amigo
Este é o fim
Meu único amigo, o fim
Dos nossos elaborados planos, o fim
De tudo que resta, o fim
Sem salvação ou surpresa, o fim
Eu nunca olharei em seus olhos de novo
Você pode imaginar o que será?
Tão sem limites e livre
Desesperadamente precisando de alguma mão estranha
ARISTÓTELES. A poética clássica. São
Paulo: Pensamento-Cultrix, 2005.
BLAKE, W. O casamento do céu e do inferno. São
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MACHADO, R. O nascimento do trágico de
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NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. São
Paulo: Centauro, 2004.
____________. A
visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Marcus Vinícius Monteiro Pedroza Machado - Formado em Filosofia pela UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professor.
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