Ébrio, letrado, infinitamente talentoso, Jim Morrison (1943-1971) foi o poeta romântico do rock na década do flower power. Com seus Doors, incendiou multidões ao dançar como um pele-vermelha e gritar seus versos de imagens fogosas e dionisíacas. Cabelos longos, lábios carnudos, não à toa que foi apelidado de “Rimbaud dos anos 60”. Esse sátiro dourado e promiscuo parece ter atualizado para a era da psicodelia os ensinamentos do poeta francês que assegurou que um poeta se faz vidente “por um longo, imenso e deliberado desregramento de todos os sentidos”. Para Rimbaud, o poeta é o “supremo sábio” que esgota todos os venenos “para guardar apenas a essência”.
A frase cai como uma luva sobre a existência desse filho de um severo oficila da marinha, que um dia se encontrou com um tecladista cool e intelectual de óculos fundo- de-garrafa chamado Ray manzarek, para com ele (e mais dois caras – John Densmore e Robby Krieger) engendrar The Doors, uma banda sublime, com titulo inspirado no livro As Portas da Percepção, de Aldous Huxley (este por sua vez, na cola do poeta revolucionário William Blake, que há dois séculos atrás escreveu: “se as poetas da percepção fossem purificadas, tudo pareceria como é: infinito”). O menino Jim se iluminou com um Xamã nas planícies do Novo México e morreu tragicamente numa banheira parisiense aos 27 anos.
Não deixa de ser estranho que o narrador no cinema, desse flerte homérico e trágico entre rock e poesia, tenha sido justamente Oliver Stone (após o namoro de Brian de Palma, Francis Ford Coppola e Scorsese com o projeto), o diretor do dramático Platoon e dos polêmicos Wall Street, Salvador, O Martírio de um Povo e Nascido em 4 de Julho. Stone baseou-se no livro No One Gets Out of Here Alive, de Sugerman e Jerry Hopkins, biografia de Morrison publicada em 1980, cujos direitos foram adquiridos pelo produtor Bill Graham em 1985. formado em cinema pela Universidade de New York, ele foi roteirista de O Expresso da Meia-Noite e Scarface. Homem bem-nascido em Manhatan (de origem judaica e francesa), o diretor se notabilizou pelos roteiros politizados e filmes com temas controvertidos e quentes.
ANJO CAÍDO - Stone ouviu The Doors pela primeira vez em 1967 quando servia no Vietnã (onde foi ferido e condecorado) e ficou impressionado com a visão apocalíptica, o erotismo e a postura diferente da de outros grupos: “A música de Morrison representa, até hoje, a busca de uma nova consciência e de novos patamares de liberdade”.
Com uma reconstituição caprichadíssima, 40 milhões de dólares (Stone cercou-se de experts em anos 60 e efeitos da Light e Magic) e um protagonista – Val Kilmer (espadachim de Willow) - que fisicamente é o próprio xeros do band-lider mitológico (além de um ator de primeira), o diretor articulou com fervor essa trip em celulóide, centrando-se nas questões cruciais que fizeram os Doors não serem apenas “mais uma” banda na história do rock. Profundamente inflamado e dado a excessos, lembranças vitais e rupturas (como expressa na bela canção “Break on Through”: “Ainda se lembra quando nós chorávamos?”), Morrison cresceu entre obsessões freudianas (como as que desabafa em The End), envolvendo-se com misticismo indígena e drogas, chaves da abertura espiritual. Numa sintética seqüência ao som de “The End”, Stone joga todo esse elenco de referencias básicas na construção do mito e sex symbol Morrison, cavaleiro da tormenta do sonho hippie, delirando entre deserto e great golden copulacion (como diz no poema “Uma Oração Americana”). Suas atitudes chegaram a afrontar bastante o establishment, provocando repressão policial, a vigilância do FBI e um processo, além de boicotes em rádios e gravadoras. Uma das seqüências traz sua famigerada indecent exposure – o concerto em Miame em que abaixa as calças ao som de “Touch me”. Ele tinha uma insolência que a industria da musica e a midia nunca domaram. Uma musicalidade, uma verdade e uma essencialidade que o tornou singular. Mas o anjo caído nunca sabia a hora de parar, e não parou.
Muitos dos problemas do filme são decorrentes dos próprios limites de Stone. Dada à expiação da mea culpa social e a generalizações (às vezes nada sutis), a câmara do diretor parece ter dificuldade em enfrentar (com riqueza cinematográfica) as infinitas possibilidades que o tema oferece. Apesar de contar direitinho a historia, em varias seqüências Stone fica preso aos clichês da fórmula sex, drugs and rock and roll, pontuados por um “contexto” (guerras, movimentos políticos, etc). Certas declarações de Stone sobre seu filme, revelam uma visão que captura Morrison num modelo engajado, mas “assimilável”: “Morrison foi um soldado que transcendeu as fronteiras da mente em nome da arte. Ele foi um guerreiro, um buscador, um poeta na linha de frente, cuja obra sempre enfocou sexo e drogas, dois temas que qualquer rapaz que esteve no Vietnã conhece melhor que ninguém”.
HETEROSSEXUAL – a decadência física após um etrelato perturbador, que culmina na morte (ainda discutida) de colapso cardíaco, em 1971, além da vida confusa com a namorada Pámela (Meg Ryan), transformada por Stone em mais boazinha do que na vida real, completam o coquetel. Em parte limitado pelos produtores (eles não quiseram encrencas com os pais de Pamela Courson, que morreu de overdose em 1974), Stone foi discreto ao abordar a vida intima do popstar, criando um ídolo hedonista, descontrolado, mulherengo e “indubitavelmente” heterossexual. O carismático líder de um grupo nascido mais para a eternidade, após um brilho fugaz, do que para a fortuna e o êxito mundial em vida (como Beatles, Stones, Who, etc.). O filme satura um pouco ao insistir nas imagens de lassidão à beira do abismo e baixo-astral junkie de um de seus cambaleante, de cabelos desregrados e calça de couro; mas sua honestidade é exemplar na criação de um filme-homenagem.
Stone é um historiador competente e bom narrador, mas não tem nada de genial ou perigoso (como certa parte da imprensa o pintou). Foi extremamente feliz na seqüência em que mostra o encontro de Morrison com o glacial e estranho Andy Warhol (Crispin Glover, perfeito) e sua corte mundana da Factory. E ao registrar um certo túmulo pichado e florido no cemitério francês Pére Lachaise, onde o poeta dissoluto e pagão repousa ao lado de Balzac, Oscar Wilde, Marcel Proust e Edith Piaf, entre outros nomes divinos. O home que escreveu que “enquanto o corpo é devastado, o espírito fica mais forte”, certamente descansa em ótima companhia.
Antonio Querino Neto – Revista Set, 1991. Antonio Querino é especializado em Jornalismo Cultural. Trabalhou como crítico de cinema e livros nas revistas SET, ISTO É e no Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo.
Nenhum comentário :
Postar um comentário
Bem-vindo a este blog. Agradecemos muito a sua visita!