*Marcus Vinícius Monteiro Pedroza Machado
*Valquiria Asche de
Paula
A ação sociopolítica cidadã, necessária e responsável por
assegurar a constituição democrática como modo de vida, permite sua
indissociabilidade em relação às ideias de liberdade, igualdade e garantia dos
direitos naturais à vida.
O
indivíduo que nega sua responsabilidade pela integridade do coletivo e a
transfere inteiramente a “outros”, a isso chama-se alienação, que se instala
entre as pessoas deformadas pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem
exigência [Adorno].
Tornar
possível a autonomia e a liberdade dos indivíduos e de seguimentos da
sociedade, tendo, diante de si, o grande aparato de controle das vidas e da
subjetividade, tal é tarefa que mobiliza Jim Morrison.
Se
Jim Morrison tinha como princípio que a liberdade, por sua condição ontológica,
é revolucionária, não deixou de lamentar quão deletéria era a atitude de uma
sociedade que acumpliciava com as injustiças. “Vi um negro ser condenado sem
qualquer direito de defesa”, afirma ele ao presenciar tal condenação.
Em
uma de suas predileções e que sempre fazia sozinho, que era caminhar pela
cidade a pé, encontrou um morador de rua em pleno inverno, sem nenhum agasalho.
Vendo tal situação, tirou sua própria jaqueta de frio e deu ao morador de rua.
Numa
entrevista em 1970, Jim Morrison afirmou:
“Lamento que tantas pessoas vivam tão omissas e indiferentes, enquanto tantas injustiças estão acontecendo. Acho
isso muito triste. É quase como se as pessoas fossem programadas por alguma
alta autoridade, desde o nascimento até a morte, para viver uma existência bem
ordenada e programada. É trágico, cara. É trágico. ”
Sua
percepção do quadro social e da condição alienante de muitos o fazia
revoltar-se contra aquelas brutais negações de justiça. E justiça, entende-se,
está mais ligado à experiência material do bloqueio de reconhecimento e do
sofrimento social em relação às imposições produzidas socioeconômicas e
disciplinares de nossas formas de vida [Safatle].
É
como se as pessoas estivessem travadas e impotentes, capturados por tantas
regras sociais e seguridades artificiais, atravessados por tantos processos de
assujeitamento que nosso aparato perceptivo, nossa capacidade de fazer sentido
estivesse no limiar de um colapso [Bentes].
Como destravar essas férreas
estruturas que circulam no interior da sociedade e que formatam os indivíduos
num assujeitamento bovino? Por que os indivíduos aceitam o conformismo social
com certa resignação diante do controle modulado pela ideologia da causalidade
aceitável?
Dentro
de Jim Morrison pulsava uma força como criação libertaria, mas as pessoas em
uma sociedade de massa não assimilam esses signos de controle da biopolítica.
Esse
texto propõe um exercício deveras interessante: pensar o posicionamento
político de Jim Morrison sob a luz das leituras políticas atuais. Longe de ser
um ponto final ele é um aceno de possibilidades de interpretação. Assim, o
texto põe lado a lado abordagens possíveis e profícuas em relação à política e
a sociedade e as observações sempre sensíveis de um artista de primeira
grandeza como Morrison e suas angústias em relação à sociedade que o cerca.
Deleuze
faz uma relação entre os instintos e as instituições que dá mais uma
possibilidade para que o homem possa lidar melhor com as interdições da lei; a
lei é uma interdição, contudo não é o único modo de lidar com os instintos que
não desaparecerão e sempre encontrarão um caminho para aparecer, seja contra a
civilização ou dentro dela própria. As instituições são modos de dar vazão para
os instintos, contudo em algum momento elas não irão dar conta desses. É sobre
essa tensão que o texto trabalhará.
A democracia
representativa, o modelo hegemônico das democracias ao redor do mundo, possui
uma série de pontos cegos que destroem sua efetividade. É a partir dessa ideia,
levantada por Karl Jaspers, que pode-se pensar em como a ação política pode ser
completamente pró-establishment ou também
ser construtiva e produtora de uma potente ação política, dependendo de como a
representação reflete a cidadania.
A
insatisfação da população é expressa de modos incontroláveis, esses modos são
expostos nos protestos de rua que, não poucas vezes, terminam com o confronto
entre a polícia e os manifestantes. Contudo existem manifestações mais
controladas que outras, de grupos com maior intimidade com o poder, que são bem
vistas e desejáveis e ganham um tratamento mais frouxo em relação a repressão
policial tendo inclusive ajuda de órgãos públicos para que ocorra de forma mais
organizada e atraindo mais pessoas. As ruas têm que ser controladas de alguma
forma para que o establishment se mantenha, porém, essa coisa parece escapar a
cada momento.
Jim
Morrison era um grande amante de filosofia, e de Nietzsche. É é muito
interessante tentar dar conta de todas as leituras anteriores a partir do jogo
de forças expostas por Nietzsche. Assim as potências estéticas, Apolíneas e
Dionisíacas, são de fato um elemento unificador das narrativas apontadas acima.
Sempre a todo momento a civilização sonha em controlar o humano e sua potência
(de maneira apolínea) contudo esse controle sempre escapa instintivamente (de
maneira dionisíaca). Assim as duas potências estéticas são modeladoras e
potentes e assim dão o tom de como o homem se organiza.
O Estado gestor de instintos
Deleuze
ao refletir sobre o papel do Estado em um de seus textos o coloca como um gestor
dos instintos irrefreáveis, desse modo a qualquer momento o choque entre a
sociedade que falha em direcionar os instintos e as instituições que os
direciona ocorre. A ação política tem como cerne acomodar o que é impossível de
ser acomodado definitivamente; nesse sentido a arte enquanto uma demonstração
daquilo que é indemonstrável, materializa essa tensão.
O
rock de Jim Morrison demonstra uma miríade de possibilidades de expressão do
instinto que escapa, transborda como uma força irrefreável. Basta lembrar-se
dos shows que terminam quase que em rituais báquicos e o eterno questionamento
institucional feito por Jim Morrison e toda a sua geração artística.
O
sentimento de rebeldia vem justo da incompatibilidade entre os instintos e a
incapacidade das instituições de responder a esses instintos. Daí o sentimento
de descontentamento que toma conta de Jim Morrison nas passagens postas acima.
O
trágico posto em um dos lamentos não possui o mesmo conteúdo que os grandes
filósofos da tragédia tomam para ele; é óbvio que o conformismo é completamente
desastroso e antiestético, estar em conformidade com o mundo é contrário à
estética trágica que surge justo do conflito entre as duas potências a apolínea
e a dionisíaca. Dessa forma a constatação de Morrison vai ao encontro com a de
uma série de outros artistas como Charles Bukowiski que viam na conformação com
o modelo social injusto uma impossibilidade abissal e lança suas fichas justo
nessa fratura.
Contudo
esses artistas não fazem somente uma crítica das injustiças sociais, a crítica
é mais profunda. Ela é sobre o modelo de existência; Morrison faz uma crítica
ontológica em sua obra, ela não é sobre em que sociedade vive-se ou deixa-se de
viver, ela é uma reflexão acerca das grandes questões que assombram a
humanidade que se repetem desde sempre.
A
incompatibilidade entre os homens e os modelos que eles próprios criam é
evidente e eterna. É essa incompatibilidade que lança uma série de homens à
injustiça, mas também garante a beleza, pois garante a potência ao artista,
algo como uma contradição que garante a diferença entre os homens e entre eles
e o mundo. Essa potência ontológica está expressa em um sem número de letras
dos Doors como The End:
The killer awoke before dawn
He put his boots on
He took a face from the ancient gallery
And he walked on down the hall
He went into the room where his sister lived
And... then he
Paid a visit to his brother, and then he
He walked on down the hall, and
And he came to a door... and he looked inside
"Father? ", "yes son", "I
want to kill you"
"Mother... I want to... fuck you".
O “drible” da democracia burguesa, ou
política e violência
Karl
Jaspers em muitos de seus textos reflete sobre a democracia representativa e os
limites de sua legitimidade para responder aos anseios da população. A
alienação política parece sempre o caminho mais cômodo para a massa da
população, como se o fato do indivíduo não participar da ação política fizesse
com que a política não o afetasse.
Esse
comportamento é algo de comum em qualquer grande democracia do planeta, no
mundo desenvolvido ou no terceiro mundo com os matizes possíveis e imagináveis.
Assim
a origem dele está na diminuição cada vez maior dos laços entre os
representantes e os representados, se é que eles já existiram, criando assim um
questionamento bastante pertinente: Por que representação? O que faz com que as
pessoas se comportem “bovinamente” ou na “ordinária quietude” designada por Jim
Morrison acima no texto?
É
óbvio que as forças políticas que se aninham no poder querem nele permanecer e
para que isso ocorra elas irão trabalhar para conservar aquilo que as fez
chegar lá, ou seja: a alienação, a descrença política, a ideia de que a ação
política é o destino dos “espertalhões” da vez.
A política não irá desaparecer se as pessoas
simplesmente ignorá-la e ela não mudará caso elas ignorem; o fato é que caso a
população continue a realizar sempre as mesmas coisas elas irão sempre colher
os mesmos resultados. Lançar a ação política nas mãos de uma oligarquia com
intimidades com o poder é associar o destino da população a ela e o resultado
será sempre a submissão. Logo, não é possível esperar de quem se beneficia da
ordem político-social que aja de maneira revolucionária. Sua intenção é e
sempre será manter-se agarrado ao poder.
A
política é a alternativa a violência para o entendimento entre os homens,
contudo quando os homens se recusam a fazer política o que resta é a violência.
Em não raros momentos da história da humanidade as únicas alternativa foram a violência
ou o extermínio mudo no interior de sociedades onde a coexistência é tornada
mais ou menos possível permanece latente em seu interior. Não existe o homem
alijado dela e nem sociedade onde foi extinta. Ela permanece sempre enquanto
alternativa à política e atinge com mais intensidade quem está fora da política
como os moradores de rua, habitantes da favela e a massa trabalhadora em geral.
Pessoas a quem a alternativa a violência é diminuída ao extremo.
Talvez
nada seja mais extremo para exemplificar a afirmação acima do que as políticas
implementadas pelo estado do Rio de Janeiro nos últimos anos. Para áreas com
grandes problemas sociais e carência do serviço público o governo enviou bases
permanentes da polícia, para áreas onde a especulação imobiliária aponta o
nariz, gigantescos empreendimentos desculpados pelos jogos olímpicos; para os
servidores da justiça o salário em dia, para os servidores do executivo
parcelas eternas de seus vencimentos.
Por que tanta diferença entre um e outro? A mais pura e óbvia
discrepância de peso político e representatividade entre os estratos da
população, que lança para a violência e desamparo uma parcela enorme da população e para a
abundância alguns poucos príncipes.
Assim,
o que Jim Morrison enxerga, com toda a razão, é a violência existente de toda a
falta de ação política. Quando é negado ao homem resolver seus problemas de
modo político a única ação possível torna-se a violência.
A criminalização da luta na rua
A
alternativa a falta de política sempre foi a luta, seja a luta armada contra
ditaduras seja a luta institucional dos sindicatos, seja a potente luta
organizada pelos movimentos sociais organizados ou ainda as expressões de
protestos nas ruas das cidades. A questão interessante é que os poderes
instituídos trabalham incessantemente para dizerem qual é validade da luta que
se trava e quem deve estar nas ruas e quem está fazendo “arruaça”; enquanto
alguns manifestantes ganham de “presente” passagens grátis de metrô e tiram
fotos com representantes da lei outros tantos ganham do establishment no máximo uma batalha campal, noites na cadeia e uma
cobertura desprestigiada da mídia.
O
establishment tem completo horror daquilo que foge ao seu controle, daí a
criação de um aparato gigante de controles e autocensuras impostas e auto
impostas em todos os modelos possíveis de modo a desacreditar, desprestigiar,
desmerecer e, no limite, destruir fisicamente qualquer movimento que critique o
establishment.
E o
que se chama de establishment aqui? O establishment não é o governo somente, é
tudo o que obtém vantagem da ordem estabelecida. É por isso que cada vez menos me
espanto ao ver artistas que defendem posições extremamente conservadoras, política
e socialmente, líderes sindicais que se acham “donos” das manifestações de rua
e jornalistas que jamais tiveram qualquer necessidade de luta política dando
aulas de como “reivindicar direitos”.
É
nesse cenário que artistas que preferiram contrariar o establishment tornam-se
exemplares. E assim The Doors tornam-se parte de uma classe de artistas capazes
de transformar as possiblidades dadas ao homem em obras de arte, assim como Bob
Dylan ou Zé Celso Martinez Correa que ao invés de fazerem coro com a repressão
preferiram experimentar novas modalidades estéticas.
O medo do caos
Segundo
Nietzsche a humanidade se equilibra entre duas potências estéticas antagônicas
e complementares: a potência apolínea e a dionisíaca. Elas são potências
estéticas, pois nenhuma das duas tem a primazia de dizer algo de verdadeiro
sobre o mundo, somente dar vazão a perspectivas sobre ele, pois no fim tais
potências são expressões daquilo que Nietzsche chamará de vontade de potência.
O sonho apolíneo claro e evidente de harmonia e paz na terra nunca ocorreu e
jamais ocorrerá; não é da natureza a paz perpétua, por outro lado a embriaguez
pura e simples não é capaz de construir nada de aproveitável. Por possuir essas
duas potências dentro de si o homem tem a necessidade de criar modos de dar
vazão a essa vontade de potência, seja do modo do sonho apolíneo, seja a
embriaguez dionisíaca a força da tragédia emana justamente da coexistência
dessas duas forças em conjunto, atuando enquanto uma imagem própria da
existência.
Voltando
à fala de Jim Morrison no início desta incursão quando ele diz que aquilo que
vê é trágico, pode-se dar razão a ele; é trágico pois é humano e o ser humano é
trágico em seu modo de existir. As duas potências apolínea e dionisíaca
representam nas imagens criadas por Nietzsche a civilização apolínea e o
barbarismo dionisíaco, sendo modos de estetizar a existência elas não são
verdades, elas são meios de lidar com uma verdade que não traz consigo os
meios.
A política
é o lugar para que as diversas forças que existem na condição humana possam
tomar seu lugar, em um intenso jogo de hierarquizações e ordenamentos sociais
que não cessa. Assim o artista possui um lugar todo especial na sociedade pois
torna imaginável aquilo que antes estava oculto, torna visível o que os
poderosos adorariam esconder. O caos de
onde as coisas surgem é tudo o que os poderosos querem evitar e tudo o que o
povo deveria aspirar.
*Marcus Vinícius M. Pedroza Machado - Formado em Filosofia pela UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), ensaísta e professor.
*Valquiria
Asche de Paula – formada em psicologia e mestranda em psicologia
social [UFABC]
Bibliografia
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros texto,
textos e entrevistas (1953-1974). Organização da edição brasileira e revisão
técnica: Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, editora Iluminuras, 2014.
DEPUIS-DÉRI, Francis. Émergence de la notion de "profilage
politique": répression policière et mouvements sociaux au Québec. Revue Politique et Sociétés Volume 33, Numéro 3, 2014